Mário
Sampaio Coelho
17 de
julho de 1.912 - 17 de julho 2.012
No
dia 17 de julho de 1912, na cidade fluminense de São Gonçalo, nasceu Mário
Sampaio Coelho, filho do lusitano José Sampaio e da mineira Ernestina Sampaio.
Ainda criança de colo a família transferiu residência para Soledade de Minas
onde ele permaneceu até o falecimento de seus pais. Filho caçula, adolescente e
sozinho mudou-se para Cruzeiro, para morar com sua irmã Zulmira, casada com o
ferroviário Carlos Pinto.
Sua
infância se transcorreu num ambiente tão humilde quanto tranqüilo. Cidade
pequena, onde todos se conheciam e eram amigos de todos, não apresentava muitos
atrativos para um desvio de conduta, para marginalidade, por exemplo. Garoto,
num ambiente pouco estimulante aos estudos adaptou-se às condições. A pouca cultura
de seus pais não conseguiu motivá-lo ao estudo e esta mesma condição os levavam
à cobrança muito comum na época, a agressão física. Um exemplo desse
comportamento está no fato de ter sempre a cabeça bem raspada e, a cada volta
da escola, seu pai ir conferir se havia sinal de “reguada” ou “galos” motivados
por castigos por mau comportamento ou tarefas não apresentadas. Em caso
positivo, levava outra surra em casa, também.
Desde
menino, demonstrando uma personalidade forte e responsável sempre trabalhou
para ajudar seus velhos pais na manutenção da família. Com certa ponta de
orgulho por várias vezes nos relatou uma passagem que quase lhe foi fatal.
Voltando para casa após vender, no trem, doces e salgadinhos ao passar de um
vagão para o outro escorregou e caiu entre os dois vagões. O episódio só não
lhe custou a vida porque, ao deslizar, com a mão direita agarrou-se à uma barra
de ferro e foi arrastado por vários metros, tendo as pontas dos sapatos
totalmente destruídas pelo raspar nas pedras. Sempre sorridente nos contava que,
mesmo naquela difícil situação, conseguiu manter preso na mão esquerda um
saquinho com quatro pastéis que havia comprado para levar à sua mãe.
Pouco,
muito pouco mesmo nos contou sobre sua infância. Sabemos sim que o pai, muito
exigente, era “chefe de trem” na Rede Mineira de Viação e que sua infância foi
transcorrida num ambiente pobre, com muitas dificuldades financeiras. Como era
comum na época, salário irrisório, uma prole de seis filhos, numa cidade muito
pequena e sem recursos, bandeou para o vício da bebida sem, contudo, dela tornar-se
totalmente submisso. Aprontava as suas, porém, nem sempre catastróficas.
Certa
feita, numa noite fria do inverno mineiro chegou em casa com um embrulho
embaixo do braço. Colocou-o sobre a mesa da sala e gritou para que sua mulher
trouxesse o Mário. Ela tentou demovê-lo da idéia, ponderando estar ele
fortemente gripado, já dormindo há algum tempo, com o corpinho quente tirá-lo da cama naquela hora da noite não era recomendável.
De nada adiantou seu apelo. Forçada a cumprir a ordem de seu marido,
humildemente, foi até o quarto, acordou o filho, agasalhou-o bem e, enrolando-o
numa coberta levou-o até a sala onde, sentado e debruçado na mesa ele os esperava. – Sampaio... aqui está o Mário... o
que quer com ele? indagou. Levantou a
cabeça, pegou o embrulho, rasgou-o fazendo caírem algumas cebolas. – O que é
isto aqui? Grita. O filho, esfregando os
olhos, com a voz rouca de um semi-acordado, responde: é cebola... Dando um murro na mesa grita, ainda mais
alto: - Ernestina leve este menino de volta... para dizer que é cebola não era
preciso que o trouxesse aqui...
Não
era religioso o “seo” José Sampaio, enquanto dona Ernestina fervorosa católica
não perdia a oportunidade de fazer suas orações. Contou-me certa vez que,
morando numa pequena casa de dois pavimentos, quando das festas religiosas sua
mãe para ver a procissão passar e orar, homenageando o santo, tinha que subir
ao pavimento superior e fingir estar varrendo a varanda.
Tinha
suas manias, como acontecia e ainda acontece hoje, com os mais idosos. Seu
trabalho o obrigava vez ou outra, passar dias fora de casa. Quando o seu
descanso caía num fim de semana era questão de honra ter um convidado para
almoçar em sua casa. Não aceitava recusa, o seu convite era mais que isto, era
uma intimação. Ninguém ousava desagradá-lo.
Num
desses fins de semana de folga o convidado era o doutor Delegado de Polícia.
Antigamente, comumente as casas tinham a porta ou a janela da sala de refeições
limitando diretamente com o passeio das ruas.
Saboreavam a famosa macarronada, da dona Ernestina, com frango caipira
e, como dizemos hoje, jogando conversa fora. Tudo conforme a tradicional
acolhida mineira. Certo momento alguém bate à porta. Dona Ernestina levantou-se
para atender. Era um pedinte a solicitar uma esmola. De pronto ela ouviu seu
marido ordenar-lhe que preparasse um prato para lhe dar o que comer. O mendigo
já foi antecipando que comida ele não queria, estava pedindo e só queria dinheiro.
Ainda calmamente, mas não tanto quanto, do seu lugar na mesa falou à esposa
para solicitar que ele, então, passasse outra hora, pois, sentado à mesa
fazendo sua refeição não costumava pegar em dinheiro, mas como ele não aceitava
voltar mais tarde não lhe daria a esmola... mas “que Deus o favorecesse”. Em
voz alta o pedinte resmungou e ele ouviu: Logo vi que é português... português
é que tem essa mania... de dizer “Deus o
favoreça”... se Deus favorecesse eu não precisava estar aqui mendigando... O sangue
ferveu-lhe nas veias pegou, atrás da porta, uma tranca de madeira e tresloucado
caiu ferozmente de pauladas sobre o indivíduo e só parou ao vê-lo completamente
desfalecido, deixando o delegado em palpos de aranha que, estupefacto a tudo
assistiu e, atônito empreendeu uma desabada carreira pela ruazinha estreita para não ter que prender o amigo em flagrante.
Mário Sampaio Coelho em Cruzeiro
Como
já foi dito anteriormente, ficando órfão em Soledade-MG a família sentiu por
bem acolhê-lo em uma das casas das irmãs casadas e a escolhida foi a de
Cruzeiro-SP.
Sua
adaptação foi perfeita, pois já com alguns sobrinhos, encontrou os seus
primeiros amigos dentro de sua própria casa.
Jovem,
bonito, de lindos olhos azuis em pouco tempo se enturmou com as senhorinhas
casadoiras da cidade e adjacências. Ainda hoje as remanescentes daquela plêiade
de beldades relembram e comentam como seu olhar, seu comportamento, sua
elegância sempre emoldurada com o mais charmoso ornamento – o famoso chapéu
coco – agradavam seus olhares.
No
entanto, nem por isso deixou de praticar tudo o que de sério, honesto,
dignificante foi incutido na sua personalidade durante sua infância e
adolescência por aquele rude e turrão português e aquela pacata e dócil
mineirinha.
Ingressou
no quadro de empregados das oficinas da Rede Mineira de Viação e aí foi testado
e aprovado nos mais difíceis testes de tenacidade, amor ao trabalho, obediência
sem bajulação, respeito aos colegas e superiores, responsabilidade profissional.
No
início da década de 1.930 era grande a confusão política do país com os
comunistas promovendo e insuflando movimentos revolucionários por todo canto. Cruzeiro não ficou fora destas manifestações,
com direito a passeatas e protestos públicos, mesmo sabendo serem proibidos
desafiavam as autoridades constituídas.
Num
domingo estava seu cunhado Carlos Pinto, na varanda de sua casa, de pijama na
maior tranqüilidade descansando, após o almoço e passa um grupo de
“anarquistas” (como eram considerados na época) e aos gritos o convidaram a
participar daquela manifestação. Do jeito que estava, saiu ao portão e
acompanhou o grupo que caminhava pela rua 4 em direção à atual praça 9 de julho, para ver o que
iriam fazer. Não caminhou mais que 200 metros , chegaram caminhões carregados de
policiais governistas que desceram e partiram para cima dos manifestantes,
batendo e prendendo quem estava pela frente. Não é preciso dizer que seu
cunhado entrou de gaiato, levou umas boas cacetadas, foi em cana e levado, só
de pijama, para lugar ignorado. A família ficou acéfala e ele que, embora jovem
era o de maior idade entre os homens, assumiu a direção onde permaneceu
enquanto seu cunhado esteve sumido.
Segundo
contam era um namorador inveterado que foi aprisionado, com pouco mais de vinte
anos por uma, também mineira.
Um
problema sério de hérnia o acometeu e após muitas tentativas de operação aqui
em Cruzeiro, a solução encontrada foi levá-lo a passar por uma intervenção
cirúrgica na cidade mineira de Varginha. Num desses acasos que a vida reserva
conheceu, no hospital, uma linda jovem – Maria de Lourdes Zambotte – por quem
se apaixonou. Embora já tendo namorada por aqui não demorou muito trocarem de
dedos as alianças.
Mas,
não foi tão simples como possa parecer. À última hora quase que o casamento não
se realiza. Já no altar, o padre descobriu que ele não havia comungado e,
então, resolveu que só realizaria o matrimônio após a comunhão. Julgando que
aquela não era a hora de ser criada tal polêmica, filho de português turrão,
decidiu que não se comungaria mesmo sob a ameaça do padre de não realizar a
solenidade. O tumulto foi geral e só algum tempo depois é que o sacerdote
resolveu deixar de lado sua exigência. Anos mais tarde veio saber que, sem seu
conhecimento, o padrinho da noiva havia acertado com o vigário o pagamento
de uma certa quantia como uma espécie de
indulgência.
Casado
com a, agora a senhora Maria de Lourdes Sampaio, trouxe consigo uma menina de
poucos anos de idade e a criou como se fosse filha, que saiu de casa somente
depois de casada.
Recém
casado, com um baixo salário de ajudante de 2ª classe, nas oficinas da RMV, e
tendo a esposa engravidado nos primeiros meses, desde cedo começou a sua
trajetória de chefe de família exemplar. Começou aí o exemplo de hombridade, de
honestidade, de moral que todos os onze filhos do casal sempre se orgulharam e
procuraram tomar como paradigma e pautar também suas vidas.
Seu
ganha-pão não ficou restrito somente àquelas horas em que prestava serviço
naquelas oficinas em que o salário além de baixo costumava atrasar.
Lembro-me,
embora ainda eu fosse bastante pequeno, de uma greve que as esposas dos
empregados fizeram para sensibilizar os patrões, mostrando-lhes as dificuldades
por que passavam com os constantes atrasos dos, já pequenos, pagamentos. As
dificuldades eram tantas que eu vi, certa vez minha mãe abrir uma garrafa de
vinagre, jogar o líquido fora e vender o vasilhame para comprar pão para o
nosso café. Na época a RMV mantinha uma
cooperativa onde vendia, aos empregados, gêneros de primeiras necessidades para
desconto em folha. Só
que o mês era comprido e o salário muito curto. O que mais me impressionou, a
ponto de ainda hoje, minha memória espontaneamente evocar aquelas tristes
imagens de colchões esticados sobre as linhas férreas com senhoras, velhos e
crianças ali deitados, para impossibilitar as saídas dos trens da estação, comendo
aquilo que os comerciantes mandavam.
Tendo
aprendido a profissão de pintor residencial passou a fazer dela uma fonte
complementar de seu salário, fazendo “bicos” após o expediente na empresa. Seu
horário de chegar em casa, para descanso, sempre era depois das vinte horas.
As
necessidades cada vez aumentavam mais, pois que, a cada dois anos em média, a
família crescia. Chegou a onze os filhos legítimos mais a que trouxeram de
Minas.
A
princípio repudiava a idéia de ter sua própria casa. Dizia não ser caramujo.
Mas, com a família aumentando sempre, os conselhos dos amigos e,
principalmente, com a ajuda de seu irmão comprou, na Vila Canevari, uma casa
simples, porém, com um grande terreno. Aliás, na época a região tinha mais
terrenos vazios e chácaras, que casas. A nossa ficava perto da chácara do Sr.
Guedes e a do Sr. Francisco Magina.
Para
pagar o empréstimo feito pelo irmão e cuidar de adequar a casa às condições da
família, mais renda teria que conseguir. Aí, contou com a disposição e garra
daquela mineira descendente de um casal formado por pai alemão e mãe italiana
que, além de cuidar da prole se dedicou à fabricação de docinhos para vender.
Eram principalmente aquelas chupetas, bichinhos, brinquedos feito
caprichosamente de açúcar, água e um saborizante. Quando lhe sobrava tempo ele
saía para vender, mas o forte ficou por moleques que vendiam de porta em porta.
Lembro-me
também do desespero por que passamos quando o depósito das oficinas pegou fogo.
Os empregados foram impedidos de sair. Tinham que ficar para apagar o incêndio.
Notícias cá fora nem uma. O horror se tornava maior quando lá longe, de frente
de nossa casa, assistíamos tambores de combustíveis subirem e labaredas
gigantescas tomarem conta do céu. As casas da rua 2, vizinhança da tragédia,
foram evacuadas porque corria o risco de serem atingidas pelo fogo que se
espalhava celeremente. Só nos aquietamos quando vimos aparecer, longe, de trás
de um matagal, a figura de meu pai. Alívio para todos os que ali rezavam,
pedindo a Deus proteção para os empregados que lá trabalhavam. Após os abraços,
beijos, choros de todos ali presentes voltou ele correndo para continuar no
combate ao fogo.
A
luta do casal se tornava cada vez maior com o crescimento das necessidades de
sustento. Um dia veio uma notícia que aumentou ainda mais as preocupações: As
oficinas seriam fechadas e todos os empregados removidos para três ou quatro
cidades de Minas.
E
agora... como deslocar-se com toda a família para a distante e desconhecida
Divinópolis?... Não se apavorou. Já estando com vinte anos de trabalho
registrado resolveu não aceitar a proposta.
Nesta
altura, reconhecendo que o alto de número de operários dispensados da RMV excedia,
em muito, as possibilidades de emprego na cidade, tomou emprestado de seu irmão
uma pequena importância e decidiu abrir um comércio. A janela de um dos quartos
– o meu - foi transformada em porta para a rua. Com tábuas, caixotes e outros
improvisos fez as prateleiras e balcão. Foi a São Paulo, comprou umas miudezas
e distribuiu, de forma bem visível ao público vizinho. Assim começou o Bazar
Sampaio.
Diante
da negativa de aceitar a transferência veio-lhe outra proposta: Transferir-se
para mais perto – Três Corações.
Mais
conhecida e ao lado de Varginha, cidade onde residia a maioria dos parentes de
minha mãe, resolveu experimentar. E foi
se apresentar. Logo na chegada veio o primeiro problema, a casa que haviam
reservado para morarmos além de muito pequena, não tinha forro, piso era de
terra batida, úmida e com uma agravante, ficava na zona de baixo meretrício.
Logicamente, foi descartada tendo que ouvir de seu chefe: “- Estes paulistas
vêem para cá pensando que vão morar em palacetes. Talvez
eu tenha que tirar o Prefeito de sua casa para ceder a ele”. E como resposta
teve que ouvir: “- Nós paulistas somos sim operários trabalhadores que nos
preocupamos em dar um mínimo de conforto à nossa esposa e filhos. Não somos
porcos para morar num chiqueiro daquele”.
Os
empregados da ferrovia tinham uma regalia: viajar com isenção de pagamento da
passagem. Esse “passe” era dado pelo chefe imediato do solicitante. Na sexta
feira seguinte, longe da família e do incipiente comércio, precisando ter
conhecimento do andamento da situação foi ao seu chefe solicitar a tal
autorização de viajem. Ao ser procurado se negou a fornecer-lhe o que era um
seu direito, informando-lhe ainda que, somente após três meses é que lhe forneceria
a passagem gratuita. Sem discussão foi até a estação ferroviária, comprou o
bilhete, tomou o primeiro trem e nunca mais voltou, abandonando o emprego com
quase vinte e um anos de trabalho.
Voltando
para Cruzeiro, recomeçou sua luta de comerciante principiante. Enquanto minha
mãe cuidava da casa, dos filhos e tomava conta do bazarzinho, estava ele
procurando casas para pintar e ainda tocando a fabricação e venda dos pirulitos
coloridos.
Nesta
época a cidade não tinha mercado municipal. A área onde hoje é o mercado da rua
quatro, era só um terreno. Ali, aos domingos, juntavam barraqueiros de variados
tipos de mercadorias.
Como
não tínhamos capital para manter um estoque, após as vinte horas do sábado
fechávamos a loja, retirávamos da prateleira toda mercadoria, acomodávamos em
caixas grandes e no domingo, às cinco horas as colocávamos num carrinho de mão,
íamos montar nossa barraca na feira. Ficávamos até as doze ou treze horas,
desmontávamos a barraca, voltávamos para casa reorganizávamos as mercadorias na
prateleira para na segunda feira cedo já estar tudo nos seus devidos lugares.
Isso durou alguns anos. A diferença foi sentida quando já não mais era preciso
encher as caixas com mercadorias da prateleira... já havia o estoque da feira
separado do da loja.
Mário
Sampaio não comprava de viajantes. Ele só comprava diretamente em São Paulo , onde tinha
condições de escolher os melhores produtos, pechinchar nos preços por pagar à
vista. Esta foi a sua tática e que deu certo. Seus preços no varejo eram, em
média, menores do que os viajantes ofereciam aos comerciantes locais. Com isto
até concorrentes preferiam comprar dele, no balcão de varejo, para revender
pelos seus próprios preços. Vida sofrida
que só um lutador como ele poderia vencer. Teve, porém, seu lado
pitoresco.
Como
os Bancos eram poucos, faziam exigências descabidas para abrirem contas
correntes e fornecerem cheques. Então, ele levava dinheiro vivo, só que para
tal minha mãe distribuía em cada bolso uma parte do dinheiro e costurava a
boca. Só era cuidadosamente descosturado na loja, depois de saber o total da
compra. Outra estratégia para economizar era dormir nos dormitórios suspensos,
ou seja, grandes salões com cordas esticadas de uma parede à outra, os
fregueses enroscavam os braços e dormiam de pé. Na manhã seguinte o guarda ia
acordá-los. Se não acordasse por bem, o
guarda simplesmente desamarrava a corda e o fulano se estatelava no chão.
Foi
um período de muito progresso. Principalmente quando resolveu vender nas festas
religiosas. Tinha um cronograma de todas as festas regionais e conseguiu ligar
o fim de uma com o começo de outra. Seguia o roteiro pré-estabelecido até
acabar o seu estoque. Os tempos eram outros, sem problemas de segurança e ele
dormia na própria barraca de venda. Ao findar a mercadoria, procurava saber
qual era o produto característico da região, se antevisse a possibilidade de
colocação por aqui, investia o arrecadado e trazia para distribuir.
Certa
feita, na região que estava, tinha uma rapadura de altíssima qualidade. Através
do chefe da estação, localizou o fabricante e conseguindo um bom preço comprou
algo que assustou o fazendeiro. Este, ambicioso, vendo um novo mercado se
abrindo para ele, em parceria com chefe da estação, embarcou para cá uma
quantidade maior que meu pai havia comprado. Tal remessa chegou uns dias antes da
nossa que havia ficado “amarrada” no embarque pelo chefe da estação. Quando a
nossa carga chegou, a cidade estava abarrotada de rapaduras e, lógico, sem
comércio para nós. Nossa casa tinha
sacos de rapadura por todo canto, umas derretendo, outras servindo de banquete
para as formigas, etc.. Num desespero de
causa meus pais partiram para fazer derivados de rapadura, tais como, com
abóbora, talhada com gengibre, pés de moleque, etc. Foram noites e noites à
beira do fogão produzindo para, no dia seguinte, sairmos vendendo de casa em casa. O trabalho nunca fez
cara feia para os meus pais.
Com
tudo isso a situação financeira da família mudou muito. Os bons resultados
foram traduzidos em imóveis construídos no vasto terreno em que situava nossa
casa. Foram ao todo nove casas de aluguel e a que morávamos. Uma área grande na, hoje, vila Crispim. O
bazar quadruplicou. Um bar e sorveteria na Vila Canevari (Bar Escondidinho –
famoso até hoje entre os remanescentes da época) e outro na Rua Dr. Celestino
(Bar dos Esportistas). Mesmo com todo seu tempo ocupado sempre arranjava um
espaçozinho para ajudar um ou outro amigo. Aprendeu a aplicar injeções e era o
socorrista dos doentes do bairro. Vez ou outra passava a noite na casa de um
doente para aplicar injeção ou dar os remédios nas horas certas. Uma noite,
arriscando sua própria vida, quando um motorista de caminhão passou em frente
seu bar, com o corpo em chamas em virtude de uma fagulha de fogo que atingiu
uma vasilha de gasolina que transportava ele, de posse de uma toalha grande, em
disparada alcançou a vítima, abraçou-o sufocando e apagando o fogo.
Mário Sampaio Coelho – na Política
Tornou-se um ponto de referência na Vila
Canevari, em virtude de vasta amizade e, até certo ponto, liderança naturalmente
conseguida. Jamais demonstrou qualquer intenção de ocupar cargos públicos. Sua
adolescência foi em período de ditadura militar, seu tempo sendo todo utilizado
no trabalho não permitiam que se preocupasse com problemas de governos.
Já na fase de certa estabilidade financeira
caiu a ditadura e vieram eleições gerais. O médico e veterinário Dr. Avelino
Júnior resolveu disputar a prefeitura da cidade. Ardilmente convidou, em cada
bairro, uma pessoa de expressão para disputar a vereança pelo seu partido. Na
vila Canevari o nome lembrado foi o de Mário Sampaio. O convite foi feito e não
aceito. Ao saber da notícia, elementos ligados ao partido adversário o procuraram
e ofereceram algumas vantagens pessoais para que ele não aceitasse o convite.
Sentiu-se ferido com tais argumentos e informando-os que já não havia aceitado,
mas, que mediante a ofensa, ele iria aceitar a proposta do Dr. Avelino. E assim
o fez. Pegou sua bicicletinha, foi até residência do médico e comunicou-o de
sua aceitação.
Este
foi o maior e imperdoável erro de sua vida. Sem estar preparado para enfrentar
as raposas da politicalha, dedicou-se de corpo e alma às novas atividades, sem
pressentir que iniciava o seu retorno à dificuldades financeiras. Muitos
daqueles que se apresentavam como amigos aproveitaram de sua imaturidade
política para explorá-lo.
Num período em que vereança não tinha salário,
muitos eleitores aproveitavam da ingenuidade política de seus eleitos e
passavam abusar da sua confiança. Era comum freguês não pagar dívidas sob a
alegação de que haviam votado nele como candidato por isso estava perdoado. Ao
contrário, outros também não pagavam porque ele tinha sido adversário, que
fosse receber do Dr. Avelino.
Praticamente
abandonou seus interesses pessoais para se dedicar ao cumprimento da promessa
de servir à comunidade. A todo instante, era visto assinando o verso de
receitas médicas, autorizando a retirada, em sua conta particular, de medicamento
numa determinada farmácia da cidade. Ao final de cada mês uma conta exorbitante
lhe era apresentada para pagamento. O tempo que antes dedicava às suas
atividades comerciais reduziu-se a menos da metade. Despesas aumentando celeremente e receitas
reduzindo, aos poucos, o caos foi se instalando. A habilidade política do Dr.
Avelino, delegando responsabilidade e poderes à cada vereador do bairro na
solução de problemas de somenos importância enchia de orgulho os menos avisados
que, a cada instante mais se aprofundava na submissão ao seu domínio. A nossa
Vila Canevari, o bairro mais próximo do centro da cidade, carecia das mais
comezinhas melhorias.
Ruas
sem nomes e sem calçamento, casas sem numeração, água só em cacimbas ou num
chafariz na rua Dr. Celestino aonde iam todos, em hora marcada, encher suas
latas para as diversas necessidades de uma casa, esgoto inexistia e quase
sempre as privadas eram construídas sobre uma fossa onde os dejetos eram
jogados quase que diretamente e daí por diante.
Uma
de suas primeiras iniciativas foi dar nomes às ruas e numeração ás casas. Os
seus projetos de denominação eram sempre procurando homenagear os pioneiros ou
benfeitores do bairro. Os moradores passaram a ter um endereço para receber correspondências
que, anteriormente, tinham que ser retiradas na agência do Correio pelo
destinatário e usufruir do mais elementar meio de comunicação.
Aqueles
que viveram os últimos anos da primeira metade do século passado, com toda
certeza, se recordam do quanto era difícil se fazer uma ligação telefônica, por
mais próximo que fosse. As ligações eram feitas via telefonista e demoravam
horas e horas para se conseguir uma. Não raro pedia-se uma ligação num dia para
conseguir completa-la só no dia seguinte. Pouquíssimas casas possuíam o privilégio
de ter um aparelho. Era impossível comprar um, mesmo pagando altíssimo preço.
Ele resolveu o problema ao conseguir a instalação de um posto público,
oferecendo nossa residência para sediar e se responsabilizar por todas as
atividades necessárias, sem qualquer ônus para a operadora. Tornamo-nos
empregados da empresa, sem retribuição uma vez que, até mesmo as ligações que
fazíamos tínhamos que pagar.
Pensando
bem mais longe e antevendo que o tamanho do mercado municipal da rua quatro era
demasiadamente pequeno e que em pouco tempo não iria suprir as necessidades da
cidade atuou junto ao Sr. Romualdo Canevari para transferir para o município, o
terreno onde hoje está o mercado que leva o seu nome
(embora a imprensa se nega em referir a esta homenagem prestada recentemente
pelo vereador Josias Diniz utilizando a designação de “mercado novo” para
aquele ponto comercial). Infelizmente as
administrações municipais não souberam aproveitar a área relegando-a ao
esquecimento, mesmo sabendo que o pólo comercial da cidade iria como está se
deslocando para outros lados.
No
início da administração avelinista, a atual Praça 9 de julho não passava de um
pasto, um pouquinho melhorado. Os vereadores resolveram fazer uma campanha para
dar ao centro da cidade uma praça digna de ser visitada. À prefeitura coube
exclusivamente o trabalho de passar a máquina e limpar o terreno. A verba para
tal trabalho foi conseguida através uma quermesse feita no próprio terreno
pelos vereadores, seus familiares e voluntários. Não houve para o município
qualquer gasto. Cada bairro montou uma barraca cuja arrecadação era destinada
às obras que teve como ponto merecedor de elogios a construção da mais linda
fonte luminosa de todo o Vale do Paraíba. A Vila Canevari marcou presença
destacada no evento.
Sendo
membro do Diretório do PTB e vereador pelo partido, tinha trânsito livre no
gabinete da Deputada Federal Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio Vargas. Numa
reunião realizada no Clube dos 500 em Guaratinguetá conseguiu dela a
implantação em Cruzeiro de um Posto do SAPS, uma espécie de armazém de secos e
molhados que, além uma grande variedade de produto, tinha preços bem inferiores
ao comércio local.
A
atual Banda Musical Santa Cecília iniciou suas atividades contando com o apoio
total do vereador, tanto para compra dos instrumentos, como uniformes, aluguel
da sede, etc. Apoio idêntico foi dado à
fanfarra da Escola Rodrigues Alves Sobrinho, à qual foram doados os instrumentos.
A
histórica batalha para trazer, do rio do Braço, água pura e cristalina para as
torneiras da cidade, teve nele um dos baluartes. A arregimentação de mão de
obra gratuita para o trabalho de abertura de valas, transporte em vários
caminhões que saiam de nossa residência, a colocação dos canos nas valas, a
vigilância em toda extensão (enquanto os trabalhos iam sendo realizados, os
adversários iam sabotando, entupindo ou dinamitando-os), a alimentação dos
voluntários, e muito mais, fizeram parte dessa epopéia que projetou Cruzeiro no
cenário paulista, como a cidade que num tempo recorde (um mês) dotou a
população do precioso líquido vencendo nada menos que doze quilômetros de
extensão, abertos a picareta, enxada e pá.
Evidentemente
esta dedicação não foi em
vão. Mas , custou caro, pois, seus interesses particulares
foram relegados a segundo plano e viu seu patrimônio, conseguido com muito
sacrifício, ser dilapidado chegando à estaca zero. Perdeu tudo o que tinha e
ainda endividou-se a tal ponto de ter que mudar de cidade para recuperar um
pouco do que esvaiu pelos vãos dos dedos.
Eleito
vereador por três gestões consecutivas, com votações crescentes, manteve-se
sempre fiel aos compromissos morais. Sua dedicação à causa pública era séria e
semi-independente das lideranças partidárias. Não aceitava injustiças e
investia mesmo contra decisões que ferissem um compromisso assumido. Fazia do
seu poder de voto na Câmara para não permitir deslizes na administração.
Não
aceitou a candidatura a vice-prefeito numa eleição considerada garantida por se
sentir, como vereador, com mais poder de interferir e fiscalizar o executivo.
Vergonhosamente
a maioria dos empregados municipais não ganhava nem o salário mínimo, enquanto
a prefeitura mantinha contas bancárias rendendo juros. Rebelou-se contra a
administração exigindo que o candidato a prefeito cumprisse o trato de corrigir
a defasagem salarial dos servidores. Depois de muitos entreveros o aumento foi
dado, porém, com redução do número de empregados o que motivou uma Folha de
Pagamento ainda menor que a anterior. Foi a gota d’água para seu rompimento com
a cúpula do executivo municipal. Levou consigo outros dois vereadores que
também discordavam da situação.
Em sua saída da cidade, teve a preocupação de
contatar com todos seus credores comunicando que parte da família permaneceria
em Cruzeiro até que saudasse todos os compromissos financeiros em atraso. E assim foi
feito. Recomeçou sua trajetória em Aparecida do Norte e, a cada entrada de
dinheiro vinha saldar uma dívida. Somente após o último pagamento uniu
novamente a família. Nesse espaço de tempo fez campanha para o desconhecido candidato
Zolner Machado à câmara estadual, conseguindo dar-lhe expressiva votação.
Depois
de algum tempo morando naquela cidade, livre de dívidas e já tendo lá comprado
o primeiro imóvel começou a ser assediado para participar da política local.
Antes que caísse em nova tentação consegui leva-lo para São José dos Campos.
Pouco depois do falecimento de minha mãe retornou para a cidade que sempre teve
como sua terra natal.
