sexta-feira, 22 de junho de 2012

MÁRIO SAMPAIO COELHO


Mário Sampaio Coelho
17 de julho de 1.912   -   17 de julho 2.012

No dia 17 de julho de 1912, na cidade fluminense de São Gonçalo, nasceu Mário Sampaio Coelho, filho do lusitano José Sampaio e da mineira Ernestina Sampaio. Ainda criança de colo a família transferiu residência para Soledade de Minas onde ele permaneceu até o falecimento de seus pais. Filho caçula, adolescente e sozinho mudou-se para Cruzeiro, para morar com sua irmã Zulmira, casada com o ferroviário Carlos Pinto.
Sua infância se transcorreu num ambiente tão humilde quanto tranqüilo. Cidade pequena, onde todos se conheciam e eram amigos de todos, não apresentava muitos atrativos para um desvio de conduta, para marginalidade, por exemplo. Garoto, num ambiente pouco estimulante aos estudos adaptou-se às condições. A pouca cultura de seus pais não conseguiu motivá-lo ao estudo e esta mesma condição os levavam à cobrança muito comum na época, a agressão física. Um exemplo desse comportamento está no fato de ter sempre a cabeça bem raspada e, a cada volta da escola, seu pai ir conferir se havia sinal de “reguada” ou “galos” motivados por castigos por mau comportamento ou tarefas não apresentadas. Em caso positivo, levava outra surra em casa, também.
Desde menino, demonstrando uma personalidade forte e responsável sempre trabalhou para ajudar seus velhos pais na manutenção da família. Com certa ponta de orgulho por várias vezes nos relatou uma passagem que quase lhe foi fatal. Voltando para casa após vender, no trem, doces e salgadinhos ao passar de um vagão para o outro escorregou e caiu entre os dois vagões. O episódio só não lhe custou a vida porque, ao deslizar, com a mão direita agarrou-se à uma barra de ferro e foi arrastado por vários metros, tendo as pontas dos sapatos totalmente destruídas pelo raspar nas pedras. Sempre sorridente nos contava que, mesmo naquela difícil situação, conseguiu manter preso na mão esquerda um saquinho com quatro pastéis que havia comprado para levar à sua mãe.
Pouco, muito pouco mesmo nos contou sobre sua infância. Sabemos sim que o pai, muito exigente, era “chefe de trem” na Rede Mineira de Viação e que sua infância foi transcorrida num ambiente pobre, com muitas dificuldades financeiras. Como era comum na época, salário irrisório, uma prole de seis filhos, numa cidade muito pequena e sem recursos, bandeou para o vício da bebida sem, contudo, dela tornar-se totalmente submisso. Aprontava as suas, porém, nem sempre catastróficas.
Certa feita, numa noite fria do inverno mineiro chegou em casa com um embrulho embaixo do braço. Colocou-o sobre a mesa da sala e gritou para que sua mulher trouxesse o Mário. Ela tentou demovê-lo da idéia, ponderando estar ele fortemente gripado, já dormindo há algum tempo, com o corpinho quente  tirá-lo da cama  naquela hora da noite não era recomendável. De nada adiantou seu apelo. Forçada a cumprir a ordem de seu marido, humildemente, foi até o quarto, acordou o filho, agasalhou-o bem e, enrolando-o numa coberta levou-o até a sala onde, sentado e debruçado na mesa ele os  esperava. – Sampaio... aqui está o Mário... o que quer com ele? indagou.  Levantou a cabeça, pegou o embrulho, rasgou-o fazendo caírem algumas cebolas. – O que é isto aqui? Grita.  O filho, esfregando os olhos, com a voz rouca de um semi-acordado, responde: é cebola...  Dando um murro na mesa grita, ainda mais alto: - Ernestina leve este menino de volta... para dizer que é cebola não era preciso que o trouxesse aqui...
Não era religioso o “seo” José Sampaio, enquanto dona Ernestina fervorosa católica não perdia a oportunidade de fazer suas orações. Contou-me certa vez que, morando numa pequena casa de dois pavimentos, quando das festas religiosas sua mãe para ver a procissão passar e orar, homenageando o santo, tinha que subir ao pavimento superior e fingir estar varrendo a varanda.
Tinha suas manias, como acontecia e ainda acontece hoje, com os mais idosos. Seu trabalho o obrigava vez ou outra, passar dias fora de casa. Quando o seu descanso caía num fim de semana era questão de honra ter um convidado para almoçar em sua casa. Não aceitava recusa, o seu convite era mais que isto, era uma intimação. Ninguém ousava desagradá-lo.
Num desses fins de semana de folga o convidado era o doutor Delegado de Polícia. Antigamente, comumente as casas tinham a porta ou a janela da sala de refeições limitando diretamente com o passeio das ruas.  Saboreavam a famosa macarronada, da dona Ernestina, com frango caipira e, como dizemos hoje, jogando conversa fora. Tudo conforme a tradicional acolhida mineira. Certo momento alguém bate à porta. Dona Ernestina levantou-se para atender. Era um pedinte a solicitar uma esmola. De pronto ela ouviu seu marido ordenar-lhe que preparasse um prato para lhe dar o que comer. O mendigo já foi antecipando que comida ele não queria, estava pedindo e só queria dinheiro. Ainda calmamente, mas não tanto quanto, do seu lugar na mesa falou à esposa para solicitar que ele, então, passasse outra hora, pois, sentado à mesa fazendo sua refeição não costumava pegar em dinheiro, mas como ele não aceitava voltar mais tarde não lhe daria a esmola... mas “que Deus o favorecesse”. Em voz alta o pedinte resmungou e ele ouviu: Logo vi que é português... português é que tem essa mania... de dizer  “Deus o favoreça”... se Deus favorecesse eu não precisava estar aqui mendigando... O sangue ferveu-lhe nas veias pegou, atrás da porta, uma tranca de madeira e tresloucado caiu ferozmente de pauladas sobre o indivíduo e só parou ao vê-lo completamente desfalecido, deixando o delegado em palpos de aranha que, estupefacto a tudo assistiu e, atônito empreendeu uma desabada carreira pela ruazinha estreita  para não ter que prender o amigo em flagrante.

Mário Sampaio Coelho em Cruzeiro

Como já foi dito anteriormente, ficando órfão em Soledade-MG a família sentiu por bem acolhê-lo em uma das casas das irmãs casadas e a escolhida foi a de Cruzeiro-SP.
Sua adaptação foi perfeita, pois já com alguns sobrinhos, encontrou os seus primeiros amigos dentro de sua própria casa.
Jovem, bonito, de lindos olhos azuis em pouco tempo se enturmou com as senhorinhas casadoiras da cidade e adjacências. Ainda hoje as remanescentes daquela plêiade de beldades relembram e comentam como seu olhar, seu comportamento, sua elegância sempre emoldurada com o mais charmoso ornamento – o famoso chapéu coco – agradavam seus olhares.

No entanto, nem por isso deixou de praticar tudo o que de sério, honesto, dignificante foi incutido na sua personalidade durante sua infância e adolescência por aquele rude e turrão português e aquela pacata e dócil mineirinha.
Ingressou no quadro de empregados das oficinas da Rede Mineira de Viação e aí foi testado e aprovado nos mais difíceis testes de tenacidade, amor ao trabalho, obediência sem bajulação, respeito aos colegas e superiores, responsabilidade profissional.

No início da década de 1.930 era grande a confusão política do país com os comunistas promovendo e insuflando movimentos revolucionários por todo canto.  Cruzeiro não ficou fora destas manifestações, com direito a passeatas e protestos públicos, mesmo sabendo serem proibidos desafiavam as autoridades constituídas.
Num domingo estava seu cunhado Carlos Pinto, na varanda de sua casa, de pijama na maior tranqüilidade descansando, após o almoço e passa um grupo de “anarquistas” (como eram considerados na época) e aos gritos o convidaram a participar daquela manifestação. Do jeito que estava, saiu ao portão e acompanhou o grupo que caminhava pela rua 4 em direção  à atual praça 9 de julho, para ver o que iriam fazer. Não caminhou mais que 200 metros, chegaram caminhões carregados de policiais governistas que desceram e partiram para cima dos manifestantes, batendo e prendendo quem estava pela frente. Não é preciso dizer que seu cunhado entrou de gaiato, levou umas boas cacetadas, foi em cana e levado, só de pijama, para lugar ignorado. A família ficou acéfala e ele que, embora jovem era o de maior idade entre os homens, assumiu a direção onde permaneceu enquanto seu cunhado esteve sumido.

Segundo contam era um namorador inveterado que foi aprisionado, com pouco mais de vinte anos por uma, também mineira.

Um problema sério de hérnia o acometeu e após muitas tentativas de operação aqui em Cruzeiro, a solução encontrada foi levá-lo a passar por uma intervenção cirúrgica na cidade mineira de Varginha. Num desses acasos que a vida reserva conheceu, no hospital, uma linda jovem – Maria de Lourdes Zambotte – por quem se apaixonou. Embora já tendo namorada por aqui não demorou muito trocarem de dedos as alianças.
Mas, não foi tão simples como possa parecer. À última hora quase que o casamento não se realiza. Já no altar, o padre descobriu que ele não havia comungado e, então, resolveu que só realizaria o matrimônio após a comunhão. Julgando que aquela não era a hora de ser criada tal polêmica, filho de português turrão, decidiu que não se comungaria mesmo sob a ameaça do padre de não realizar a solenidade. O tumulto foi geral e só algum tempo depois é que o sacerdote resolveu deixar de lado sua exigência. Anos mais tarde veio saber que, sem seu conhecimento, o padrinho da noiva havia acertado com o vigário o pagamento de  uma certa quantia como uma espécie de indulgência.
Casado com a, agora a senhora Maria de Lourdes Sampaio, trouxe consigo uma menina de poucos anos de idade e a criou como se fosse filha, que saiu de casa somente depois de casada.

Recém casado, com um baixo salário de ajudante de 2ª classe, nas oficinas da RMV, e tendo a esposa engravidado nos primeiros meses, desde cedo começou a sua trajetória de chefe de família exemplar. Começou aí o exemplo de hombridade, de honestidade, de moral que todos os onze filhos do casal sempre se orgulharam e procuraram tomar como paradigma e pautar também suas vidas.
Seu ganha-pão não ficou restrito somente àquelas horas em que prestava serviço naquelas oficinas em que o salário além de baixo costumava atrasar.
Lembro-me, embora ainda eu fosse bastante pequeno, de uma greve que as esposas dos empregados fizeram para sensibilizar os patrões, mostrando-lhes as dificuldades por que passavam com os constantes atrasos dos, já pequenos, pagamentos. As dificuldades eram tantas que eu vi, certa vez minha mãe abrir uma garrafa de vinagre, jogar o líquido fora e vender o vasilhame para comprar pão para o nosso café.  Na época a RMV mantinha uma cooperativa onde vendia, aos empregados, gêneros de primeiras necessidades para desconto em folha. Só que o mês era comprido e o salário muito curto. O que mais me impressionou, a ponto de ainda hoje, minha memória espontaneamente evocar aquelas tristes imagens de colchões esticados sobre as linhas férreas com senhoras, velhos e crianças ali deitados, para impossibilitar as saídas dos trens da estação, comendo aquilo que os comerciantes mandavam.
Tendo aprendido a profissão de pintor residencial passou a fazer dela uma fonte complementar de seu salário, fazendo “bicos” após o expediente na empresa. Seu horário de chegar em casa, para descanso, sempre era depois das vinte  horas.
As necessidades cada vez aumentavam mais, pois que, a cada dois anos em média, a família crescia. Chegou a onze os filhos legítimos mais a que trouxeram de Minas.
A princípio repudiava a idéia de ter sua própria casa. Dizia não ser caramujo. Mas, com a família aumentando sempre, os conselhos dos amigos e, principalmente, com a ajuda de seu irmão comprou, na Vila Canevari, uma casa simples, porém, com um grande terreno. Aliás, na época a região tinha mais terrenos vazios e chácaras, que casas. A nossa ficava perto da chácara do Sr. Guedes e a do Sr. Francisco Magina.
Para pagar o empréstimo feito pelo irmão e cuidar de adequar a casa às condições da família, mais renda teria que conseguir. Aí, contou com a disposição e garra daquela mineira descendente de um casal formado por pai alemão e mãe italiana que, além de cuidar da prole se dedicou à fabricação de docinhos para vender. Eram principalmente aquelas chupetas, bichinhos, brinquedos feito caprichosamente de açúcar, água e um saborizante. Quando lhe sobrava tempo ele saía para vender, mas o forte ficou por moleques que vendiam de porta em porta.

Lembro-me também do desespero por que passamos quando o depósito das oficinas pegou fogo. Os empregados foram impedidos de sair. Tinham que ficar para apagar o incêndio. Notícias cá fora nem uma. O horror se tornava maior quando lá longe, de frente de nossa casa, assistíamos tambores de combustíveis subirem e labaredas gigantescas tomarem conta do céu. As casas da rua 2, vizinhança da tragédia, foram evacuadas porque corria o risco de serem atingidas pelo fogo que se espalhava celeremente. Só nos aquietamos quando vimos aparecer, longe, de trás de um matagal, a figura de meu pai. Alívio para todos os que ali rezavam, pedindo a Deus proteção para os empregados que lá trabalhavam. Após os abraços, beijos, choros de todos ali presentes voltou ele correndo para continuar no combate ao fogo.

A luta do casal se tornava cada vez maior com o crescimento das necessidades de sustento. Um dia veio uma notícia que aumentou ainda mais as preocupações: As oficinas seriam fechadas e todos os empregados removidos para três ou quatro cidades de Minas.  
E agora... como deslocar-se com toda a família para a distante e desconhecida Divinópolis?... Não se apavorou. Já estando com vinte anos de trabalho registrado resolveu não aceitar a proposta.
Nesta altura, reconhecendo que o alto de número de operários dispensados da RMV excedia, em muito, as possibilidades de emprego na cidade, tomou emprestado de seu irmão uma pequena importância e decidiu abrir um comércio. A janela de um dos quartos – o meu - foi transformada em porta para a rua. Com tábuas, caixotes e outros improvisos fez as prateleiras e balcão. Foi a São Paulo, comprou umas miudezas e distribuiu, de forma bem visível ao público vizinho. Assim começou o Bazar Sampaio.      
Diante da negativa de aceitar a transferência veio-lhe outra proposta: Transferir-se para mais perto – Três Corações.
Mais conhecida e ao lado de Varginha, cidade onde residia a maioria dos parentes de minha mãe, resolveu  experimentar. E foi se apresentar. Logo na chegada veio o primeiro problema, a casa que haviam reservado para morarmos além de muito pequena, não tinha forro, piso era de terra batida, úmida e com uma agravante, ficava na zona de baixo meretrício. Logicamente, foi descartada tendo que ouvir de seu chefe: “- Estes paulistas vêem para cá pensando que vão morar em palacetes. Talvez eu tenha que tirar o Prefeito de sua casa para ceder a ele”. E como resposta teve que ouvir: “- Nós paulistas somos sim operários trabalhadores que nos preocupamos em dar um mínimo de conforto à nossa esposa e filhos. Não somos porcos para morar num chiqueiro daquele”.
Os empregados da ferrovia tinham uma regalia: viajar com isenção de pagamento da passagem. Esse “passe” era dado pelo chefe imediato do solicitante. Na sexta feira seguinte, longe da família e do incipiente comércio, precisando ter conhecimento do andamento da situação foi ao seu chefe solicitar a tal autorização de viajem. Ao ser procurado se negou a fornecer-lhe o que era um seu direito, informando-lhe ainda que, somente após três meses é que lhe forneceria a passagem gratuita. Sem discussão foi até a estação ferroviária, comprou o bilhete, tomou o primeiro trem e nunca mais voltou, abandonando o emprego com quase vinte e um anos de trabalho.

Voltando para Cruzeiro, recomeçou sua luta de comerciante principiante. Enquanto minha mãe cuidava da casa, dos filhos e tomava conta do bazarzinho, estava ele procurando casas para pintar e ainda tocando a fabricação e venda dos pirulitos coloridos.
Nesta época a cidade não tinha mercado municipal. A área onde hoje é o mercado da rua quatro, era só um terreno. Ali, aos domingos, juntavam barraqueiros de variados tipos de mercadorias.
Como não tínhamos capital para manter um estoque, após as vinte horas do sábado fechávamos a loja, retirávamos da prateleira toda mercadoria, acomodávamos em caixas grandes e no domingo, às cinco horas as colocávamos num carrinho de mão, íamos montar nossa barraca na feira. Ficávamos até as doze ou treze horas, desmontávamos a barraca, voltávamos para casa reorganizávamos as mercadorias na prateleira para na segunda feira cedo já estar tudo nos seus devidos lugares. Isso durou alguns anos. A diferença foi sentida quando já não mais era preciso encher as caixas com mercadorias da prateleira... já havia o estoque da feira separado do da loja.
Mário Sampaio não comprava de viajantes. Ele só comprava diretamente em São Paulo, onde tinha condições de escolher os melhores produtos, pechinchar nos preços por pagar à vista. Esta foi a sua tática e que deu certo. Seus preços no varejo eram, em média, menores do que os viajantes ofereciam aos comerciantes locais. Com isto até concorrentes preferiam comprar dele, no balcão de varejo, para revender pelos seus próprios preços. Vida sofrida  que só um lutador como ele poderia vencer. Teve, porém, seu lado pitoresco.
Como os Bancos eram poucos, faziam exigências descabidas para abrirem contas correntes e fornecerem cheques. Então, ele levava dinheiro vivo, só que para tal minha mãe distribuía em cada bolso uma parte do dinheiro e costurava a boca. Só era cuidadosamente descosturado na loja, depois de saber o total da compra. Outra estratégia para economizar era dormir nos dormitórios suspensos, ou seja, grandes salões com cordas esticadas de uma parede à outra, os fregueses enroscavam os braços e dormiam de pé. Na manhã seguinte o guarda ia acordá-los.  Se não acordasse por bem, o guarda simplesmente desamarrava a corda e o fulano se estatelava no chão.

Foi um período de muito progresso. Principalmente quando resolveu vender nas festas religiosas. Tinha um cronograma de todas as festas regionais e conseguiu ligar o fim de uma com o começo de outra. Seguia o roteiro pré-estabelecido até acabar o seu estoque. Os tempos eram outros, sem problemas de segurança e ele dormia na própria barraca de venda. Ao findar a mercadoria, procurava saber qual era o produto característico da região, se antevisse a possibilidade de colocação por aqui, investia o arrecadado e trazia para distribuir.
Certa feita, na região que estava, tinha uma rapadura de altíssima qualidade. Através do chefe da estação, localizou o fabricante e conseguindo um bom preço comprou algo que assustou o fazendeiro. Este, ambicioso, vendo um novo mercado se abrindo para ele, em parceria com chefe da estação, embarcou para cá uma quantidade maior que meu pai havia comprado. Tal remessa chegou uns dias antes da nossa que havia ficado “amarrada” no embarque pelo chefe da estação. Quando a nossa carga chegou, a cidade estava abarrotada de rapaduras e, lógico, sem comércio para nós.  Nossa casa tinha sacos de rapadura por todo canto, umas derretendo, outras servindo de banquete para as formigas, etc..  Num desespero de causa meus pais partiram para fazer derivados de rapadura, tais como, com abóbora, talhada com gengibre, pés de moleque, etc. Foram noites e noites à beira do fogão produzindo para, no dia seguinte, sairmos vendendo de casa em casa. O trabalho nunca fez cara feia para os meus pais.

Com tudo isso a situação financeira da família mudou muito. Os bons resultados foram traduzidos em imóveis construídos no vasto terreno em que situava nossa casa. Foram ao todo nove casas de aluguel e a que morávamos.  Uma área grande na, hoje, vila Crispim. O bazar quadruplicou. Um bar e sorveteria na Vila Canevari (Bar Escondidinho – famoso até hoje entre os remanescentes da época) e outro na Rua Dr. Celestino (Bar dos Esportistas). Mesmo com todo seu tempo ocupado sempre arranjava um espaçozinho para ajudar um ou outro amigo. Aprendeu a aplicar injeções e era o socorrista dos doentes do bairro. Vez ou outra passava a noite na casa de um doente para aplicar injeção ou dar os remédios nas horas certas. Uma noite, arriscando sua própria vida, quando um motorista de caminhão passou em frente seu bar, com o corpo em chamas em virtude de uma fagulha de fogo que atingiu uma vasilha de gasolina que transportava ele, de posse de uma toalha grande, em disparada alcançou a vítima, abraçou-o sufocando e apagando o fogo.




Mário Sampaio Coelho – na Política

 Tornou-se um ponto de referência na Vila Canevari, em virtude de vasta amizade e, até certo ponto, liderança naturalmente conseguida. Jamais demonstrou qualquer intenção de ocupar cargos públicos. Sua adolescência foi em período de ditadura militar, seu tempo sendo todo utilizado no trabalho não permitiam que se preocupasse com problemas de governos.
 Já na fase de certa estabilidade financeira caiu a ditadura e vieram eleições gerais. O médico e veterinário Dr. Avelino Júnior resolveu disputar a prefeitura da cidade. Ardilmente convidou, em cada bairro, uma pessoa de expressão para disputar a vereança pelo seu partido. Na vila Canevari o nome lembrado foi o de Mário Sampaio. O convite foi feito e não aceito. Ao saber da notícia, elementos ligados ao partido adversário o procuraram e ofereceram algumas vantagens pessoais para que ele não aceitasse o convite. Sentiu-se ferido com tais argumentos e informando-os que já não havia aceitado, mas, que mediante a ofensa, ele iria aceitar a proposta do Dr. Avelino. E assim o fez. Pegou sua bicicletinha, foi até residência do médico e comunicou-o de sua aceitação.
Este foi o maior e imperdoável erro de sua vida. Sem estar preparado para enfrentar as raposas da politicalha, dedicou-se de corpo e alma às novas atividades, sem pressentir que iniciava o seu retorno à dificuldades financeiras. Muitos daqueles que se apresentavam como amigos aproveitaram de sua imaturidade política para explorá-lo.
 Num período em que vereança não tinha salário, muitos eleitores aproveitavam da ingenuidade política de seus eleitos e passavam abusar da sua confiança. Era comum freguês não pagar dívidas sob a alegação de que haviam votado nele como candidato por isso estava perdoado. Ao contrário, outros também não pagavam porque ele tinha sido adversário, que fosse receber do Dr. Avelino.
Praticamente abandonou seus interesses pessoais para se dedicar ao cumprimento da promessa de servir à comunidade. A todo instante, era visto assinando o verso de receitas médicas, autorizando a retirada, em sua conta particular, de medicamento numa determinada farmácia da cidade. Ao final de cada mês uma conta exorbitante lhe era apresentada para pagamento. O tempo que antes dedicava às suas atividades comerciais reduziu-se a menos da metade.  Despesas aumentando celeremente e receitas reduzindo, aos poucos, o caos foi se instalando. A habilidade política do Dr. Avelino, delegando responsabilidade e poderes à cada vereador do bairro na solução de problemas de somenos importância enchia de orgulho os menos avisados que, a cada instante mais se aprofundava na submissão ao seu domínio. A nossa Vila Canevari, o bairro mais próximo do centro da cidade, carecia das mais comezinhas melhorias.
Ruas sem nomes e sem calçamento, casas sem numeração, água só em cacimbas ou num chafariz na rua Dr. Celestino aonde iam todos, em hora marcada, encher suas latas para as diversas necessidades de uma casa, esgoto inexistia e quase sempre as privadas eram construídas sobre uma fossa onde os dejetos eram jogados quase que diretamente e daí por diante.
Uma de suas primeiras iniciativas foi dar nomes às ruas e numeração ás casas. Os seus projetos de denominação eram sempre procurando homenagear os pioneiros ou benfeitores do bairro. Os moradores passaram a ter um endereço para receber correspondências que, anteriormente, tinham que ser retiradas na agência do Correio pelo destinatário e usufruir do mais elementar meio de comunicação.
Aqueles que viveram os últimos anos da primeira metade do século passado, com toda certeza, se recordam do quanto era difícil se fazer uma ligação telefônica, por mais próximo que fosse. As ligações eram feitas via telefonista e demoravam horas e horas para se conseguir uma. Não raro pedia-se uma ligação num dia para conseguir completa-la só no dia seguinte. Pouquíssimas casas possuíam o privilégio de ter um aparelho. Era impossível comprar um, mesmo pagando altíssimo preço. Ele resolveu o problema ao conseguir a instalação de um posto público, oferecendo nossa residência para sediar e se responsabilizar por todas as atividades necessárias, sem qualquer ônus para a operadora. Tornamo-nos empregados da empresa, sem retribuição uma vez que, até mesmo as ligações que fazíamos tínhamos que pagar.
Pensando bem mais longe e antevendo que o tamanho do mercado municipal da rua quatro era demasiadamente pequeno e que em pouco tempo não iria suprir as necessidades da cidade atuou junto ao Sr. Romualdo Canevari para transferir para o município, o terreno  onde  hoje está o mercado que leva o seu nome (embora a imprensa se nega em referir a esta homenagem prestada recentemente pelo vereador Josias Diniz utilizando a designação de “mercado novo” para aquele ponto comercial).  Infelizmente as administrações municipais não souberam aproveitar a área relegando-a ao esquecimento, mesmo sabendo que o pólo comercial da cidade iria como está se deslocando para outros lados.
No início da administração avelinista, a atual Praça 9 de julho não passava de um pasto, um pouquinho melhorado. Os vereadores resolveram fazer uma campanha para dar ao centro da cidade uma praça digna de ser visitada. À prefeitura coube exclusivamente o trabalho de passar a máquina e limpar o terreno. A verba para tal trabalho foi conseguida através uma quermesse feita no próprio terreno pelos vereadores, seus familiares e voluntários. Não houve para o município qualquer gasto. Cada bairro montou uma barraca cuja arrecadação era destinada às obras que teve como ponto merecedor de elogios a construção da mais linda fonte luminosa de todo o Vale do Paraíba. A Vila Canevari marcou presença destacada no evento.
Sendo membro do Diretório do PTB e vereador pelo partido, tinha trânsito livre no gabinete da Deputada Federal Ivete Vargas, sobrinha de Getúlio Vargas. Numa reunião realizada no Clube dos 500 em Guaratinguetá conseguiu dela a implantação em Cruzeiro de um Posto do SAPS, uma espécie de armazém de secos e molhados que, além uma grande variedade de produto, tinha preços bem inferiores ao comércio local.
A atual Banda Musical Santa Cecília iniciou suas atividades contando com o apoio total do vereador, tanto para compra dos instrumentos, como uniformes, aluguel da sede, etc.  Apoio idêntico foi dado à fanfarra da Escola Rodrigues Alves Sobrinho, à qual foram doados os instrumentos.
A histórica batalha para trazer, do rio do Braço, água pura e cristalina para as torneiras da cidade, teve nele um dos baluartes. A arregimentação de mão de obra gratuita para o trabalho de abertura de valas, transporte em vários caminhões que saiam de nossa residência, a colocação dos canos nas valas, a vigilância em toda extensão (enquanto os trabalhos iam sendo realizados, os adversários iam sabotando, entupindo ou dinamitando-os), a alimentação dos voluntários, e muito mais, fizeram parte dessa epopéia que projetou Cruzeiro no cenário paulista, como a cidade que num tempo recorde (um mês) dotou a população do precioso líquido vencendo nada menos que doze quilômetros de extensão, abertos a picareta, enxada e pá.
Evidentemente esta dedicação não foi em vão. Mas, custou caro, pois, seus interesses particulares foram relegados a segundo plano e viu seu patrimônio, conseguido com muito sacrifício, ser dilapidado chegando à estaca zero. Perdeu tudo o que tinha e ainda endividou-se a tal ponto de ter que mudar de cidade para recuperar um pouco do que esvaiu pelos vãos dos dedos.
Eleito vereador por três gestões consecutivas, com votações crescentes, manteve-se sempre fiel aos compromissos morais. Sua dedicação à causa pública era séria e semi-independente das lideranças partidárias. Não aceitava injustiças e investia mesmo contra decisões que ferissem um compromisso assumido. Fazia do seu poder de voto na Câmara para não permitir deslizes na administração.
Não aceitou a candidatura a vice-prefeito numa eleição considerada garantida por se sentir, como vereador, com mais poder de interferir e fiscalizar o executivo.
Vergonhosamente a maioria dos empregados municipais não ganhava nem o salário mínimo, enquanto a prefeitura mantinha contas bancárias rendendo juros. Rebelou-se contra a administração exigindo que o candidato a prefeito cumprisse o trato de corrigir a defasagem salarial dos servidores. Depois de muitos entreveros o aumento foi dado, porém, com redução do número de empregados o que motivou uma Folha de Pagamento ainda menor que a anterior. Foi a gota d’água para seu rompimento com a cúpula do executivo municipal. Levou consigo outros dois vereadores que também discordavam da situação.
 Em sua saída da cidade, teve a preocupação de contatar com todos seus credores comunicando que parte da família permaneceria em Cruzeiro até que saudasse todos os compromissos financeiros em atraso. E assim foi feito. Recomeçou sua trajetória em Aparecida do Norte e, a cada entrada de dinheiro vinha saldar uma dívida. Somente após o último pagamento uniu novamente a família. Nesse espaço de tempo fez campanha para o desconhecido candidato Zolner Machado à câmara estadual, conseguindo dar-lhe expressiva votação.
Depois de algum tempo morando naquela cidade, livre de dívidas e já tendo lá comprado o primeiro imóvel começou a ser assediado para participar da política local. Antes que caísse em nova tentação consegui leva-lo para São José dos Campos. Pouco depois do falecimento de minha mãe retornou para a cidade que sempre teve como sua terra natal.

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